Entorpecidos pelo orvalho e pelas baixas temperaturas que se fazem sentir ao início da manhã no topo da serra do Alvão, todos os insectos estão parados junto ao solo. 
O nevoeiro já se dissipou, mas o Sol ainda não é suficiente para aquecer os pequenos animais que não regulam a temperatura interna do seu corpo. De asas abertas, muitas borboletas tentam capitalizar a maior energia possível para rapidamente ficarem operacionais e descolarem da turfeira. O tempo é curto e a missão trabalhosa, mas está tudo agendado no código genético da borboleta-azul-das-turfeiras (Maculinea alcon).
Neste pequeno lameiro, com a dimensão aproximada de três campos de futebol, ocorrem interacções ecológicas inesperadas, como uma cooperação improvável e um logro que dura dez meses. Mas já lá iremos.

De asas abertas, muitas borboletas tentam capitalizar a maior energia possível para rapidamente ficarem operacionais e descolarem da turfeira.

Os primeiros indivíduos em voo nos prados de altitude são os machos, bem identificados pela cor azul das asas. Dias depois, em grandes quantidades, emergem do subsolo as fêmeas, menos vistosas, com asas acastanhadas na parte interior.
Com uma esperança de vida de cerca de dez dias, os machos não perdem tempo para espalhar os seus genes pelo maior números de fêmeas. Mal sentem as feromonas das parceiras espalhadas no ar, lançam-se numa competição feroz.
Muitas fêmeas, agarradas a pequenas ervas, ainda a desamarrotar as asas atrofiadas, acabadas de sair da crisálida, são imediatamente disputadas por vários machos que se apressam a dominar a situação. Dias depois, tudo fica mais calmo e o frenesim desaparece. Eclodem mais fêmeas e a maior parte dos machos já cumpriu a sua função. 

Fotografada com pormenor inédito, esta é a fase decisiva do crescimento das larvas. As formigas tomam-nas como suas e tratam delas durante dez longos meses até à metamorfose, altura em que as borboletas eclodem.

No lameiro da senhora Libânia, em pleno Parque Natural do Alvão e perto da aldeia de Lamas de Olo, há centenas de borboletas. Para além das borboletas-azuis-das-turfeiras podemos observar ainda as muito comuns borboleta-marmorizada-branca da Ibéria ou a borboleta-loba. Mas o que faz destes três hectares uma área tão importante para a conservação?
Todos os anos são contados aqui mais indivíduos de M. alcon. Em 2010, foram cinco mil  e, no ano passado, foram recenseados seis mil.  Esta é a maior população estável da borboleta-azul-das-turfeiras de toda a Europa. E embora a atenção dos biólogos esteja continuamente direccionada para o ar, em busca de mais asas em voo, é no solo que se encontra uma particularidade biológica.
As medidas de conservação aplicadas a este terreno com pouco mais de três hectares resumem-se a um pastoreio regrado, evitando a utilização de queimadas para controlo de crescimento de matos rasteiros e impedindo que o gado coma a planta genciana-das-turfeiras (Gentiana pneumonanthe). Planta discreta, com 30 a 80 centímetros de caule, a genciana tem um palmarés famoso. Já foi classificada como a “Planta do Ano” na Alemanha em 1980 por valiosos serviços prestados ao ambiente. Quais? Na prática, ela é a hospedeira dos ovos e lagartas da borboleta. Apesar da sua simplicidade, a borboleta-azul-das-turfeiras tem hábitos sofisticados e aceita apenas um local de hospedagem – precisamente os caules da genciana.

Apesar da sua simplicidade, a borboleta-azul-das-turfeiras tem hábitos sofisticados e aceita apenas um local de hospedagem – precisamente os caules da genciana.

A gestão destas medidas de conservação num terreno privado é financiada pela autarquia de Vila Real, que paga uma mensalidade à proprietária do terreno, e por um grupo de voluntários oriundos principalmente do Reino Unido, que roçam os matos menos úteis ao ciclo de vida deste animal.
Embora a vegetação seja abundante, esta espécie de borboleta apenas usa a genciana para colocar os seus ovos. Após duas semanas de gestação, as minúsculas lagartas saem do ovo e vão para dentro da capsula floral da planta onde se alimentam dos órgãos sexuais da flor. Com duas a três semanas, as lagartas atingem os 3mm, deixam-se cair para o solo e aí acontece a segunda etapa de uma improvável relação ecológica.
As larvas emitem uma alomona muito parecida com a da larva da formiga da espécie Myrmica aloba. Todo o lameiro é então patrulhado pelas formigas que, ao encontrarem estas pequenas lagartas, as tomar por seus familiares e as transportam para dentro dos seus ninhos. Desenhados de forma a suportarem abundantes chuvas ou mesmo algumas inundações de Inverno, os ninhos das formigas são muito eficazes contra as tempestades.  

Um encontro na genciana. 

Durante dez a onze meses, as lagartas da borboleta-azul-das-turfeiras são alimentadas, limpas e acarinhadas pelas formigas. Em momentos de curta disponibilidade alimentar, as lagartas podem mesmo comer as larvas das formigas. Neste período subterrâneo e quase diariamente, as lagartas vão cedendo substâncias açucaradas às formigas através de uma glândula nectarina, em jeito de compensação. 
A ilusão e troca de serviços dura vários meses até as lagartas iniciarem a metamorfose e passarem ao estado de pupas. Após alguns dias neste estado de modificação, o amarelo âmbar da crisálida dá lugar a tons cinzentos muito escuros. É demasiado tarde para as formigas detectarem que foram ludibriadas e que os seus incessantes carinhos maternais privilegiaram um insecto bem diferente do imaginado.
O Verão está instalado na serra do Alvão e os múltiplos odores espalham-se pelos campos. A sincronização entre a emersão das borboletas e a floração da genciana é fundamental para a continuidade do ciclo. Não podem existir desencontros neste processo, pois a quebra da ligação pode erradicar a espécie daquele local.

Numa área limitada de 110m2, contam as gencianas, a sua maturação, bem como a quantidade de ovos que foram depositados e a sobrevivência das lagartas.

Todas as manhãs, estudantes holandeses da Universidade de Wageningen fazem contagens e avaliam a progressão do ciclo. Numa área limitada de 110m2, contam as gencianas, a sua maturação, bem como a quantidade de ovos que foram depositados e a sobrevivência das lagartas. Em 2012, os biólogos Raldi Bakker e Bas Oteman acompanharam centenas de plantas, observaram milhares de ovos e mediram centenas de lagartas. Depois deste minucioso trabalho, chegaram à conclusão preliminar de que a taxa de sobrevivência da eclosão dos ovos é de pouco mais de 50%. Cientes deste facto, as borboletas vão espalhando estrategicamente as suas posturas de ovos brancos e com um milímetro de diâmetro por vários caules de genciana. Em 2012, numa única planta, foram contados 77 ovos. 
Além dos estudos sobre a evolução dos primeiros dias de vida destes seres, biólogos da Universidade de Trás-os-Montes e Alto-Douro, coordenados por Paula Arnaldo, vão conhecendo melhor esta população com várias amostragens distintas. Uma delas consiste em capturar indivíduos, marcá-los com números, posicioná-los através de GPS e voltar a capturá-los nos dias seguintes.

Distribuída por vários países da Europa, a borboleta-azul-das-turfeiras já se extinguiu no Reino Unido e na Holanda

 Dificultado pela fragilidade e dimensão dos insectos, este método permite conhecer as movimentações dos animais, tendo já revelado que esta espécie não faz grandes voos: voa em média 100 metros por dia, limitando assim a sua dispersão. A sua capacidade para transpor obstáculos em altitude é também muito reduzida. Apesar destas condicionantes, a espécie tem-se propagado para outras áreas da serra do Alvão, sendo actualmente conhecidos outros núcleos com dezenas ou centenas de indivíduos.
O núcleo de Lamas de Olo é o maior e o melhor conhecido, mas há ainda pequenas populações desta espécie noutras zonas do país, como na serra de Montemuro, em Carrazeda do Alvão, em Montalegre ou Vila Pouca de Aguiar.
O estatuto de conservação da borboleta-azul-das-turfeiras em Portugal é ameaçado, mas, em Lamas de Olo, por força da “razão sexual que tem sido dominante no lado masculino, em 2011, as posições inverteram-se”, sublinha Paula Arnaldo. “O número de fêmeas superou o dos machos, um bom indicador da estabilidade deste núcleo”.

Um pormenor do trabalho científico, que inclui a marcação dos minúsculos insectos para monitorização das suas deslocações.

Os minúsculos tecidos das borboletas são também recolhidos regularmente para trabalhos de genética na Universidade de Copenhaga. “Através do DNA, é possível conhecer a riqueza genética deste núcleo, bem como a existência de alguma alteração genética nesta população portuguesa, uma vez que ela se encontra numa zona periférica da sua distribuição na Europa e fora da zona-padrão”, diz Paula Arnaldo.
Distribuída por vários países da Europa, a borboleta-azul-das-turfeiras já se extinguiu no Reino Unido e na Holanda e já foi reintroduzida com sucesso, naquele que foi o primeiro projecto mundial de reintrodução de lepidópteros. Em Portugal, sobrevive em habitats como este, discretos, pequenos e onde, em poucos metros quadrados, se desenvolve a acção desta narrativa.
Numa área tão ínfima, a improbabilidade desta relação de cooperação da borboleta com a genciana e a dissimulação de que as formigas são vítimas fazem-nos pensar. É como se, com um gigantesco salão de dança disponível, dois parceiros com características únicas tivessem apenas um só espaço compatível para ambos – as turfeiras onde cresce a genciana.

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